quinta-feira, 26 de agosto de 2010

O PAI DA GIBITECA DE BELO HORIZONTE

ANTONIO ROQUE GOBBO
Gustavo Werneck
Numa noite fria, ele sonhou que era o Tocha Humana e saiu cambaleando pela casa, num ataque de sonambulismo que surpreendeu os pais. Em outra, mais abafada, deu asas à imaginação e voou no foguete de Flash Gordon, em direção ao planeta Mongo, uma viagem absolutamente inesquecível. Na infância em São Sebastião do Paraíso, no Sul de Minas, realidade e fantasia se alternavam no mundo povoado de vilões de cara amarrada e heróis cavalgando pela floresta escura ou defendendo a Terra dos alienígenas, com unhas e dentes, máscaras coloridas, armaduras reluzentes e as melhores intenções.
O bancário aposentado Antônio Roque Gobbo, de 72 anos,(em 2007) morador do Bairro do Prado, na Região Oeste de Belo Horizonte, não se esquece nunca das 4,8 mil revistas em quadrinhos que colecionou durante cinco décadas e ainda encantam leitores de todas as idades.O pequeno tesouro, doado em 1992 à Biblioteca Pública Infantil e Juvenil, no Bairro Santo Antônio, na Zona Sul da capital, é uma das principais atrações do aniversário de 15 anos da gibiteca, comemorados este mês, com a Maratona de Quadrinhos, exposição, filmes, grupos de discussão, oficinas, cultura e diversão.
Ao visitar o local, Gobbo me disse que valeu a pena cada segundo com as histórias. Como um dos homenageados do evento, com direito a painel na entrada e palavras de elogio, ele se encontrou com vários estudantes entretidos, agora, com as emoções que ainda fazem parte de sua vida.Antes de qualquer conversa, o aposentado ressalta que nunca foi um colecionador. “Desde criança, sempre compartilhei a leitura das revistas com meus amigos. Colecionador tem um pouco de egoísmo, por isso me considero um admirador, um fanático pelo assunto”, conta, enquanto folheia um livro de capa dura sobre o espacial Flash Gordon, saído da prancheta de Alex Raymond, em 1934. Gobbo não se cansa de enaltecer a criatividade do autor, a beleza e perfeição dos traços da namorada Dale Arden ou marcantes do arquiinimigo, o tirano Imperador Ming. “Olha que maravilha!”, aponta os desenhos com o ardor de um adolescente. Batman é outro personagem que o conquistou, pela sua figura gótica e aparência misteriosa. “É eterno”, declara.
A paixão pelas histórias em quadrinhos (HQs) começou por volta dos 7 anos, num tempo em que televisão era peça de ficção de um futuro quase intergalático. Na então pequena São Sebastião do Paraíso, Gobbo devorava, com apetite voraz, o que encontrava pela frente: Gibi, que acabou se tornando o nome genérico de todas as revistas, Tico-tico, Guri, Mirim e Gazeta Infantil, entre outras. “Elas vinham de São Paulo, mas, ao longo dos anos, fui adquirindo em banca ou alugando”, revela. Mas ninguém pense que o menino ficava o dia inteiro em função desse universo mágico. Nada disso. “Eu comprava escondido. Na época, os gibis eram considerados incitadores de violência, havia muito preconceito, mas a garotada toda lia nos seus esconderijos domésticos ”, lembra.Gobbo acompanhou a evolução das edições em qualidade e conteúdo.
Observou a melhoria da impressão, já que inicialmente eram rodadas em papel jornal, da apresentação das capas, do formato, dos desenhos e da cartela de cores. E viu também as pilhas de revistas subirem pelas paredes na casa de seus pais e depois na sua própria residência, ao lado da mulher e dos cinco filhos. Ninguém nunca reclamou do volume, nem quando a família era obrigada a mudar de cidade, devido ao emprego do pai no Banco do Brasil. “Viajei o país inteiro, até no Rio Grande do Sul morei, sempre carregando caixas e caixas. Montava tudo numa estante e, na hora de partir, desfazia o serviço.“O curioso é que nenhum de seus filhos se interessou por gibis, surpreende-se o aficionado, que também tem sete netos.
Foi em 1985, em BH, que veio a pergunta feita pela mulher Enny: “O que você vai fazer com tudo isso?” Vendo que não tinha sentido ler, guardar ou simplesmente dar, organizou em casa a Biblioteca Nacional de História em Quadrinhos, aberta ao público. Como ela acabou prejudicando a privacidade da família, ele resolveu comprar uma sala que funcionou durante quatro anos, até, finalmente, fazer a doação à biblioteca pública, criando-se a gibiteca.
“Livros foram feitos para criar asas e voar de mão em mão”, filosofa Gobbo, que, rato de biblioteca, já lançou seis livros de contos. Na velocidade que vem escrevendo nos últimos 10 anos – “um conto por semana, já tenho 432 prontos” –, pretende chegar aos mil até 2017. História é o que não falta.